Pré-Congresso do Triângulo Mineiro -
Estranho: In/Confidências
O estranho: o impacto estético na criação
Desassossego
Fernando
Pessoa
“Outrora eu era daqui,
e hoje regresso estrangeiro,
forasteiro do que vejo e ouço,
velho de mim.
Já vi tudo, ainda o que nunca vi,
Nem o que nunca verei.
Eu reinei no que nunca fui.”
Recorro a Fernando Pessoa para iniciar essa
breve reflexão sobre o texto de Freud “O Estranho” de 1919. Em variados
momentos podemos experimentar os desassossegos na vida. Sentimentos de vazio, de estranheza, um
“estar pela metade” ou habitando uma inquietude sem nome. É como estar
carregando uma pesada bagagem com objetos que não escolhemos naquele momento
(pelo menos conscientemente), mas que definem nossa caminhada e os rumos que
tomamos. Muitas vezes, de sobressalto, somos atingidos por sentimentos que nos
causam profunda estranheza e nos subtraem de um momento para outro,
bruscamente.
A
psicanálise nos convida a adentrar nessa estranheza que, longe de ser
desconhecida, remete ao que é familiar, ao já vivido, porém banido da
consciência. Em “ O Estranho”, Freud aborda o contexto da estranheza como algo
assustador, que provoca medo e horror e assim o é justamente por remeter ao que
já é conhecido, ao que nos é familiar. “Mera distração” e algo que deveria
ficar fora da consciência ou permanecer secreto, vem `a luz. Basta um “cochilo”
das nossas defesas para o reprimido surgir e instalar o desassossego.
Estranhar
é perder a referência da realidade consciente, é não se localizar, não se
reconhecer. É perceber-se num desassossego de que algo que não poderia ser
tocado, o foi.
A
psicanálise lida com o estranho na medida em que garimpa as categorias de
sentimentos peculiares de cada um, na extensa variedade das qualidades do
sentir, teoria da estética pesquisada por Freud no referido texto. A
estética aqui pretendida não se trata da teoria da beleza, e sim, das
qualidades do sentir.
O
conto a seguir nos convida a pensar o tema em questão. Trata-se da estranheza
de uma garotinha diante percepção de que não somos eternos e do desassossego
diante da crença perdida no paraíso.
Tons
Inversos
Todos já haviam terminado de comer.
Inclusive a sobremesa. A menininha estava já de uniforme, cabelo ainda molhado
do banho, terminando de lamber a colher por onde escorria o melado grosso,
feito em casa com rapadura vinda da roça. Muito do que ela comia vinha da roça:
milho, farinha, frutas variadas, ovos, frango, leite, queijo. Ela iria para a
escola, embora preferisse o caminho da roça...
A mãe tirava a mesa do almoço, os três
irmãos mais novos brincavam, o pai tocava gaita acompanhando o violão de um
amigo que veio almoçar naquele dia. A menininha saltitava prá cá e prá lá
esperando a hora de ir para a escola com as primas que moravam ao lado. Ela
gostava de música e gostava da música na voz do pai. Ela pensava que ele, o
pai, era mais pai quando cantava: tons e versos... Ela estava feliz no
contraste produzido entre os sons da música e das panelas na cozinha: tons inversos.
Sua mãe lhe entregava o lanche já embalado
num guardanapo de pano para que ela o guardasse na lancheira. Que cheiro bom! A
menininha fechou os olhos e aproximou o lanche embalado para sentir ainda mais
de perto aquele cheiro tão apetitoso de pão com bife e imaginou como seria boa
a hora do lanche na escola! Ela sabia que, de olhos fechados, o cheiro ficava
mais puro. Mas o olfato apurado também apurou outro sentido e a menininha ouviu
não apenas o violão e a gaita. Ouviu, além dos tons, os versos da música O
Menino da Porteira:
“Apeei
o meu cavalo e no ranchinho a beira chão,
vi uma mulher chorando quis saber qual a
razão.
Boiadeiro
veio tarde, veja a cruz do estradão!
Quem
matou o meu filhinho foi um boi sem coração!”
Nada mais tinha graça. Nenhum cheiro,
nenhum som, nenhuma imagem, nada, a não ser uma profunda angústia habitava a
mente daquela garotinha que não sabia o que fazer com o que acabara de ouvir
“quem matou o meu filhinho foi um boi sem coração!” Mas como? Criança morre? Mãe
fica sem filho? Filho fica sem mãe? Ela não mais podia ir à escola, ficou
cabisbaixa e triste. A mãe em meio a tantos afazeres e mais três filhos
pequenos para cuidar, nem percebeu a estranheza da filha e disse para ela se
apressar porque estava na hora de ir para a escola. Entretanto, a tia, cujo
olhar alcançava além da visão, enxergou que algo havia acontecido com a
sobrinha e perguntou o que se passara na hora do almoço, ao que a mãe da
garotinha respondeu que ‘nada de mais’ e o almoço fora até muito alegre com
música e tudo: tons e versos.
A menininha nada falou, mas pensou: “Como,
nada aconteceu? Um menino morreu e minha mãe fala que não aconteceu nada? Ela
quis conter o choro, mas este veio como uma torrente com fortes soluços. A mãe
largou as panelas e os outros filhos, enxugou as mãos no avental e pôs a filha
no colo encorajando-a a dizer o que a fazia chorar. A menininha disse que
estava muito triste porque o menino morreu. Mas a mãe não compreendia e
lentamente a filha disse: “O menino... da porteira...” A mãe riu (como os
adultos fazem quando escutam as crianças), mas também apertou a filha contra o
peito acolhendo o seu drama (como os adultos fazem quando se reconhecem nas
crianças que sofrem) e a garotinha sentiu que alguma resposta teria para sua
aflição. Sua mãe lhe disse algo sobre as histórias que as músicas contam e que
talvez fossem inventadas.
A menina foi para a escola. Ela,
entretanto, percebeu que as histórias podiam ser inventadas, mas a morte não
era invenção e isso era duro de suportar. Que nota dissonante! A mesma música
que na voz do pai era verso, canta a morte: tons inversos.
A menininha continuou crescendo em meio a
muitos outros tons. Mas algo muito original aconteceu daquele dia em diante,
pois ela passou a notar a presença constante dos contrastes na vida. E ela
estava aprendendo sobre os antônimos na escola: triste – feliz; claro – escuro;
feio – bonito, etc. E ela acreditava que estes contrastes estavam separados,
como que garantindo um estado de ser, estar, permanecer, ficar.
Os tons inversos do menino da porteira
acompanham essa pessoa, ora menina ora mulher, muito alegre, mas também triste,
calada ou cantando, solitária e solidária, calma e aflita, nos caminhos da roça
e da cidade, em dias nublados ou ensolarados. Entre tons (in) versos.
Do
ambiente familiar relatado no conto podemos pensar algo também familiar, porém
muitas vezes soterrado da consciência, que é nossa condição humana de
desamparo. Na tentativa de nos livrarmos de ideia de solidão e de perda,
criamos personagens sinistros que nos atormentam. A psicanálise nos aponta uma
possibilidade de encontro com esses personagens. Uma experiência dolorosa, mas
não será mais doloroso ainda e experiência de uma não existência? Não
existência no sentido de que, se não podemos viver a dor, no momento em que ela
nos assola, onde estamos? Para onde vamos ou onde nos escondemos?
Buscar
evadir-se da experiência por esta ser dolorosa não nos livra da dor, não nos
protege dos estranhamentos. Ampliamos a nossa capacidade de sentir, de afetar e
ser afetado, quanto mais nos dispomos à dor, numa co-existência das diferentes
qualidades do sentir.
Diz
Jorge Larrosa que a palavra experiência
tem o ex de exterior, de estrangeiro (em espanhol, “extranjero”), de exílio, de estranho (em espanhol, “extraño”), e também o ex de existência. Em alemão
experiência é Erfahrung, que contém o
fahren de viajar. A psicanálise
propõe essa viagem.
Somente ouvindo nossas estranhezas podemos nos
reconciliar com o nosso inverso e então poder viver. O estranho que não pode
ter voz nos aprisiona, nos paralisa e nos impede de viver criativamente. Sequestrados
pela angústia da morte ou melhor, pela angústia da própria vida, vivemos
fragmentados ou dominados pelo medo do forasteiro de nós mesmos.
Para
aqueles que se aventuram a adentrar nos estranhos espaços sombrios há a chance
de hospedarem o estrangeiro de si próprio e conviver com a totalidade de si.
Retomando Fernando Pessoa, “outrora ser daqui e então regressar estrangeiro e
reinar no que nunca fomos.”
Maria Emília Silva Loyola
Uberaba, março/2019
| MARIA LUIZA SOARES FERREIRA BORGES, MARIA EMÍLIA SILVA LOYOLA, MARIA LUISA SALOMÃO, WAGNER FRANCISCO VIDILLE |
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